sábado, 29 de maio de 2021

ÍNDIA, UMA ABORDAGEM ECOLÓGICA

 

Recebi de Maurício Andrés Ribeiro, o texto abaixo, apresentado em live do IMHA, “Conversando sobre a Índia”:

"Em 1977  fiz um estudo comparativo entre o Brasil e a Índia, sobre Habitat e transferência de tecnologia,   como pesquisador visitante no Instituto Indiano de Administração em Bangalore com uma bolsa do CNPq.

Estudei Kenchankuppe, uma aldeia no caminho entre Bangalore e Mysore. Ela é uma das 660 mil aldeias indianas onde hoje vivem cerca de 900 milhões de pessoas. Ela é semi-autosuficiente em energia e materiais de construção, alimentos e água, o que lhe deu sustentabilidade durante milhares de anos ( a energia elétrica somente existe há 150 anos, ou seja  3% do tempo de vida dessa civilização).

Ali as casas são desenhadas de modo a abrigar vacas e búfalos, que são alimentados à tardinha, passam a noite em pátios e produzem o  valioso esterco que pela manhã é levado como adubo para os campos.




Há muitas atividades ao ar livre, inclusive aulas  para as crianças nas estações secas e quentes. As aldeias hoje se conectam com o mundo por meio das telecomunicações e da internet,  o que revitaliza essas pequenas comunidades.

Anda-se a pé, de bicicleta ou, atualmente, em motos. Riquixás são usados, como nas cidades: são veículos arejados, econômicos, que ocupam pouco espaço, adequados para um ou dois passageiros. 

O hábito de comer com a mão direita e fazer a higiene com a mão esquerda é um modo de codificar o uso do corpo e substitui equipamentos e objetos. Sentar-se no chão em postura corporal própria é o padrão.

Ao invés  de dar as mãos, como se praticava no ocidente, o tradicional cumprimento indiano do Namasté colabora para a higiene pessoal e o isolamento físico. Tem, ainda, um significado espiritual em uma cosmovisão que acredita existir uma centelha divina dentro de cada um e que Deus não está lá longe e no alto, mas dentro de cada pessoa.” O Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em ti.”

Há muitos deuses animais, tais como a vaca, o macaco, a cobra, o elefante etc. Animais são deuses nessa tradição politeísta, e não apenas objetos ou pessoas não humanas.

O hábito alimentar vegetariano e o baixo consumo de carne contribuem para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e para tornar mais leve ou reduzir a pegada ecológica per capita. A pegada ecológica  indica a área necessária para sustentar uma pessoa e qual o peso que o estilo de vida de uma pessoa exerce sobre a terra. Ela é calculada considerando hábitos de vida, alimentares, meio de transporte, energia usada, resíduos produzidos. A Índia tem uma das mais leves pegadas ecológicas per capita do mundo e parte disso se deve à frugalidade de seu modo de vida.



A organização da população em aldeias descentralizadas, o uso do corpo economizando objetos e os hábitos alimentares vegetarianos ajudam  a explicar a leve pegada ecológica per capita indiana.

Em 2003,  26 anos depois da pesquisa, publiquei o livro Tesouros da Índia para a civilização sustentável. Condensei  o que estudara até então, escrevi sobre a formação histórica da Índia, os impactos  da colonização, as questões de ciência e tecnologia, de cultura e meio ambiente, da espiritualidade e do dharma e por que a Índia se sustentou por milhares de anos com baixo impacto ambiental.




Escrevi também sobre a não violência e por que a Índia tem níveis de violência – assassinatos, estupros e vários outros tipos de crimes – muito menores do que os do Brasil.

Em 2008 publiquei o livro Meio ambiente e evolução humana com ênfase na ecologia interior,  do ser. Focalizei o interesse na ecologia pessoal, na noosfera e nas paisagens interiores. Busquei inspirações em fontes indianas: nos Brahma Kumaris que praticam a raja yoga e com os quais meditei as 4 horas da manhã em Mount Abu, Rajastão. Dos Brahma Kumaris aprendi a importância da arte de sair de cena, uma alegoria da própria vida. Inspirei-me nos conhecimentos sobre a psicologia yogue, a subjetividade, as cosmovisões indianas que aprendi na Sociedade Teosófica em Adyar; no ashram de Ramana Mararishi em Tiruvanamalai. Os ashrams, comunidades lideradas geralmente por um mestre ou guru, são altamente funcionais e obtém bons resultados e qualidade de vida com pouco uso dos recursos, com suas cozinhas coletivas e áreas  de serviços comuns. Têm um design ecológico inteligente.

A consciência do corpo, a respiração como um ato cultural, o Yoga são parte de um soft power  indiano poderoso que aos poucos influencia os demais países e sociedades. A Índia tem uma rica inteligência civilizacional que inclui a hospitalidade para abrigar ampla diversidade de povos, a paciência e resiliência.



2013 – Em minha mais recente viagem à Índia prestei atenção à água. Vi como  sua escassez inviabilizou o uso de uma cidade, Fatehpur Sikri, construída para ser a capital do império Mogol, mas que foi abandonada devido a uma mini crise climática. Visitei centros de educação para a água onde crianças aprendem sobre a importância dessa substancia e sobem em balança hídrica onde veem a quantidade de água que existe em seus próprios corpos.

Em 2018 focalizei a atenção em Sri Aurobindo, um farol que nos ajuda a compreender a grande transição atual e a mudança de eras em que nos encontramos. Estudei as ideias mundialistas de Gandhi, Nehru, Tagore e o pensamento político e social de Sri Aurobindo. Já havia traduzido uma Constituição para a Federação do Planeta Terra, publicada pela imprensa de Auroville, cidade internacional inspirada em Sri Aurobindo.

A Índia foi uma fonte de inspirações para Sri Aurobindo, a pessoa que pavimentou o caminho de Gandhi e outros companheiros para alcançarem a independência daquele país por meio da resistência não violenta. 

Em 2020   estudei a dinâmica e os resultados parciais da pandemia no Brasil e na Índia. Durante todo o tempo os números de mortes por milhão são 10 vezes menores na Índia  do que no Brasil.  Os números oficiais são pouco confiáveis devido a subnotificação no Brasil (30%) e na India ( de 2 a 5 vezes - Univ. Michigan) Mesmo no pior cenário para a Índia, o número de mortes proporcionalmente à população é muito menor do que o do Brasil. Por quê isso? Levanto várias hipóteses: deficiências de governos; imunidade natural, genética, variantes menos virulentas, população jovem; distribuição em aldeias; hábitos culturais e alimentares, hábitos corporais e físicos, civismo etc

Ainda há um enigma e um mistério relacionado com tais números. Somente haverá uma resposta definitiva quando a pandemia arrefecer e tivermos o distanciamento histórico para compreender o que se passou." ( Maurício Andrés Ribeiro)


*FOTOS DE MAURÍCIO ANDRÉS RIBEIRO

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