domingo, 21 de maio de 2023

COMENTÁRIO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO PARA MARIA HELENA ANDRÉS

 


Recebi de Regina Helena de Freitas Campos o texto abaixo, que foi apresentado no dia 15 de maio, em Evento de Extensão da Escola Guignard

COMENTÁRIO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E EDUCAÇÃO PARA MARIA HELENA ANDRÉS

Escola Guignard, UEMG, Belo Horizonte, 15/05/2023

 

Regina Helena de Freitas Campos

Professora de Psicologia Educacional na



UFMG

Presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff (CDPHA – www.cdpha.pro.br)

 




Gostaria em primeiro lugar de ressaltar minha grande admiração por Maria Helena, como artista, mãe, educadora. A convivência com ela, desde a juventude, frequentando sua casa como colega e amiga da Ivana (sua filha), e mais tarde vendo-a a atuar como artista no atelier de litografia de minha irmã Cacau, junto com Ivana e outras artistas, que funcionava na casa de nossa mãe, tive oportunidade de observar sua inteligência, sensibilidade e generosidade, sempre compartilhando seus pensamentos e intuições, estimulando a ampliação de nossa consciência e criatividade, participando de nossa educação. Para mim, Maria Helena tem sido uma fonte de inspiração em meus trabalhos em psicologia e educação, sempre manifestando interesse por minhas experiências e compartilhando seus ensinamentos e perspectivas.

Nesta oportunidade de falar sobre essas interações com a grande artista e arte-educadora que conhecemos, farei referência a suas propostas educacionais expressas no livro Caminhos da arte, de sua autoria, publicado pela Editora C/Arte em 2000 (Andrés, 2000).

No livro, Maria Helena define a educação como um processo que visa desenvolver a auto consciência e a consciência ampliada, em articulação com as relações com o meio em que vivemos e com as pessoas, promovendo a criatividade. Afirma que, através da arte, o ser humano experimenta o autoconhecimento, a relação com os outros e com o universo, em formas de comunicação que superam a verbalização. Na formulação de sua perspectiva sobre a educação recorre à psicologia de Pavlov, à experiência própria e de outros colegas como o arte-educador brasileiro Augusto Rodrigues, as educadoras Nathalie de Salzman (venezuelana) e Lúcia Pimentel (nossa colega na UFMG), os educadores indianos Krishnamurti e Sri Aurobindo, e companheiros e companheiras, artistas como ela.

Criatividade é um conceito em psicologia que diz respeito à capacidade humana de criar coisas novas, sejam objetos, sentimentos, ideias, reflexões. O que permite a criatividade é, claro, a plasticidade do aparelho psíquico humano, que promove combinações novas, por ação da mente, da imaginação, a partir da experiência anterior, seja individual ou social, e dos conhecimentos já adquiridos através dessas experiências. Todo ato de criação tem também uma dimensão emocional, são as emoções e a curiosidade sobre o mundo que desencadeiam em nós a necessidade de inventar coisas novas, visando a integração com o ambiente e com as pessoas com quem compartilhamos o ser-no-mundo (Vigotski, 2018).

Como artista, Maria Helena considera a arte como “a grande auxiliar da educação” (p. 145). Como se daria essa colaboração? A educação visa transmitir conhecimentos. Contudo, o acúmulo de informações apenas teóricas, não vivenciadas pelo estudante, não é suficiente para a construção verdadeira do conhecimento, para a sua internalização subjetiva. Assim, a arte, ao proporcionar a oportunidade de o estudante vivenciar conceitos abstratos de forma mais concreta, muitas vezes lúdica, próxima da realidade, é que poderia contribuir para estabelecer uma articulação mais dinâmica entre o sujeito e o conhecimento.

No mesmo livro – Os Caminhos da Arte – Maria Helena observa que o educador deve ser “humilde diante do novo que desperta” (p. 145). Como o conhecimento transmitido é sempre novo para o aprendiz, é preciso dar a ele a oportunidade de vivenciar essas novidades a partir de sua própria subjetividade, conectando-as com experiências anteriores. Assim, o desenvolvimento da consciência, com o auxílio da arte, “torna-se um processo natural de crescimento”, sendo o movimento criador um impulso espontâneo do ser humano, que se realiza através de ações. As pessoas estão sempre interrogando o mundo que as cerca, investigando como se organiza, descobrindo suas leis, se conscientizando e, consequentemente, expandindo suas possibilidades de intervir no ambiente e nas relações com o outro. O aprendiz  procura conhecer os objetos e acontecimentos do mundo físico, do mundo social e do mundo emocional agindo sobre eles, e percebendo como respondem a seus questionamentos e perguntas.

A ação sobre os objetos tanto físicos quanto sociais ou emocionais pode sempre ser mediada por atividades artísticas - a dança, as artes plásticas, a música, o teatro, as artes em geral. Através delas se instaura a vivência do espaço e das formas (artes plásticas),do movimento (dança), dos sons, do tempo e do ritmo (música), da sociabilidade e construção da alteridade (teatro), da linguagem e da função simbólica (literatura), etc.

Piaget, o grande estudioso do desenvolvimento humano, especialista em interrogar as crianças sobre sua visão de mundo e suas ações, certamente concordaria com essas afirmações sobre a educação. Para o psicólogo suíço, o desenvolvimento é um processo de superação do egocentrismo (como auto-referência) e é essa superação contínua das limitações que nos são impostas por nosso próprio ponto de vista que permite o acesso ao conhecimento e a conquista da objetividade (possível) para os seres humanos. Para ele, o progresso do conhecimento não procede da mera adição de detalhes ou de novos níveis, como se o conhecimento mais amplo fosse somente um complemento do anterior, mais pobre ou incompleto. Pelo contrário, os conhecimentos mais complexos exigem uma reformulação contínua dos pontos de vista prévios, por meio de um processo que retrocede e avança, corrigindo a cada momento tanto os erros iniciais sistemáticos como aqueles que surgem no transcorrer do caminho. Piaget cunhou os conceitos de assimilação (o movimento do sujeito em direção ao mundo que o cerca, aos objetos, sejam concretos ou abstratos), a acomodação (quando o quadro de referência anterior do sujeito se transforma para acomodar um novo conhecimento) e equilibração (quando um equilíbrio – muitas vezes dinâmico, precário – é atingido, a partir do qual se iniciam novas descobertas).Esse processo dialético, segundo Piaget, obedece a uma lei de desenvolvimento bem definida, a chamada “lei da descentração”, como ocorre com a ciência, quando ela passa da perspectiva geocêntrica para a heliocêntrica, ou como ocorre com a criança pequena, quando um conceito, por exemplo o de vovô, deixa de se referir apenas à imagem de uma personagem privilegiada e passa a se referir a todo um conjunto de seres humanos compreendidos em um sistema de relações de equivalência (Piaget, 1976; Parrat-Dayan, 2007).

Maria Helena considera que as artes promovem a conexão entre o corpo e a natureza, entre o sujeito e as outras pessoas, que desencadeia o processo de conhecimento descrito acima a partir dos sentidos. Especialmente nas artes plásticas, as mãos funcionam como “intermediárias entre a mente, o físico e as emoções” (p. 147). Segundo ela, na educação pela arte “as mãos ocupam um lugar de grande importância, pois permitem o extravasamento imediato dos símbolos do inconsciente, aflorados através de formas, cores e sinais gráficos” (p. 147). Essa afirmação lembra a psicóloga e educadora russo brasileira Helena Antipoff, que considerava as mãos como um prolongamento físico da inteligência, afirmando que o sujeito pensa com as mãos, experimentando, operando... (Antipoff, 1992, p. 125; Almeida, 2017).

Outro momento de expressão de grande impacto no desenvolvimento é o aprendizado do desenho. Para Maria Helena, os sentimentos e representações do mundo na criança são revelados nos desenhos, na pintura, na modelagem. Todas essas atividades não verbais seriam uma expressão direta das emoções, dos sentimentos e do intelecto, trazendo à tona aquilo que a palavra não consegue expressar.

Também a poesia, “forma direta e quase musical de expressão criadora” (p. 147), seria uma via para o desenvolvimento da consciência, na medida em que expressa uma síntese de várias formas de expressão de uma visão de mundo permeada pelas emoções.

A propósito dessas funções da arte, Maria Helena lembra os pensamentos inspiradores de Augusto Rodrigues, que dialogou intensamente com Helena Antipoff a propósito da arte-educação (Almeida, 2017). Para Rodrigues, a arte seria um fator relevante no processo de tornar a cultura viva, palpável, pois que através dela “o homem traz à superfície o que há de mais profundo dentro dele, descendo a seu âmago” e dele emergindo a partir da subjetividade mais genuína. Esse movimento proporcionaria ao ser humano a possibilidade de, conhecendo-se a si mesmo, conhecer o seu semelhante. Nas palavras de Maria Helena:

O “(...) núcleo interior (do ser humano) é atingido no momento criador, despertando espontaneamente a consciência de si mesmo. A arte é o caminho direto para essa redescoberta do eu, porque o ato criador representa o próprio encontro com a vida” (Andrés, 2000, p. 148)

            Essa articulação entre o momento de criação e a consciência de si parece ser a síntese da proposta de arte-educação de Maria Helena. As etapas do autoconhecimento associado à criação do novo seriam, na sua visão:

1) explorar as potencialidades contidas no próprio corpo, com seus movimentos e vibrações mais sutis, incluindo, claro, sua relação com a mente;

2) compreender a grandeza do potencial contido no psiquismo, visando nossa realização como seres humanos, “vivos e habitantes do planeta”;

3) experimentar o sentimento de paz interior que “brota espontâneo desse conhecimento de nós mesmos” (Andrés, 2000, p. 149).

            Sintetizando o processo que descreve (e que ela conhece bem, como artista que é), Maria Helena resume o sentimento de plenitude que dele decorre, usando o famoso dito do oráculo de Delfos: “Conhece-te e sê livre” (p. 149).

            A propósito dessa experiência de autoconhecimento e libertação proporcionada pelo fazer artístico na educação, a autora cita sua larga vivência com experimentos educacionais de autores como Nathalie Salzman (a educação para o despertar da consciência e o desenvolvimento do sentimento), Lúcia Pimentel (uso de novas tecnologias para ampliar o alcance da experiência educativa). Inspira-se também nas propostas educacionais dos indianos Krishnamurti e Sri Aurobindo, que propõem o desenvolvimento do aprendiz de forma integral (corpo, emoções e mente), articulando a atividade espontânea ,o respeito a todas as formas de vida, a liberdade de pensamento, o prazer de aprender sem depender de recompensas ou punições, despertando o interesse por tudo o que se passa ao redor dele, proposta sintetizada na afirmação de que “é de dentro de si mesma que a criança (=o aprendiz) vai buscar o seu caminho para atuar no mundo com plena consciência” (Andrés, 2000, p. 151). Através de atividades artísticas e esportivas e das práticas da ioga e da meditação seria possível   conseguir esse foco no autoconhecimento e no desenvolvimento integral das potencialidades humanas, associando as culturas ocidental e oriental, razão e intuição.

            Experiências práticas de arte educação conectadas a essas reflexões são citadas na Índia, onde a autora teve oportunidade de observar educadores e filósofos colocando em ação suas ideias, e no Brasil, no trabalho de artistas populares do Vale do Jequitinhonha, de educadores inovadores da Escola Guignard (como Sara Ávila) ou em outros lugares.

            O objetivo seria sempre estimular a melhor conexão com o mundo, através de uma “consciência cósmica”, na qual, “quando temos a mente vazia de conceitos e teorias, podemos perceber a eternidade de cada instante, sentindo a vida como o próprio movimento criador se manifestando” (Andrés, 2000, p. 185).

            Em conclusão, recomendo fortemente a referência ao livro Caminhos da arte como inspiração para os educadores na atualidade, por sua relevância para nossas preocupações contemporâneas – a autocentração, a paz interior e exterior, o cuidado com as outras pessoas e com o meio ambiente – e por sua extrema sensibilidade! (Depoimento de Regina Helena Campos)




Referências:

Almeida, Marilene Oliveira (2017) As vozes de Helena Antipoff e Augusto Rodrigues no ensino de arte em Minas Gerais (1940-1960): diálogos e colaborações entre a arte e a educação nova. Belo Horizonte: SC Literato.

Andrés, Maria Helena (2000) Caminhos da arte. Belo Horizonte: C/Arte.

Antipoff, Helena (1992) Coletânea das obras escritas de Helena Antipoff (Vol. IV – Educação Rural). Belo Horizonte: Imprensa Oficial.

Parrat-Dayan, Sílvia. Piaget e a pedagogia. In: Assis, R.M.; Lourenço, E. & Borges, A.A.P. (Orgs.) Cultura, direitos humanos e práticas inclusivas em psicologia e educação. Belo Horizonte: CDPHA e Editora PucMinas, 2015, p. 51-64.

Piaget, Jean (1990) Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes.

Vigotski, L.S. (2018) Imaginação e criação na infância (Trad. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes). São Paulo: Expressão Popular.

*FOTOS DE MARILENE ALMEIDA

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