terça-feira, 20 de dezembro de 2016

PELAS VEREDAS DE SI II

Continuação da entrevista de Artur Andrés com Lauro Henriques Jr, publicada no livro “Palavras de Poder”:

“No livro Encontro com Homens Notáveis, Gurdjieff  fala sobre
como seria o ser humano ideal: “Só merecerá o nome de homem e
poderá contar com algo que foi preparado para ele, desde o Alto,
aquele que tiver sabido adquirir os dados necessários para
conservar ilesos tanto o lobo como o cordeiro que foram confiados
à sua guarda”. Nesse caso, a palavra lobo simboliza o aspecto mais básico do ser humano, o que inclui os instintos, a parte motora, etc. Já o cordeiro
simboliza o conjunto dos sentimentos. Ou seja, a questão não é matar o
lobo, como a idéia defendida na cultura ocidental, de que se deve
extirpar tudo o que é mais grosseiro, em nome de algo sublime, do alto.
O desafio é ver que, na realidade, lobo e cordeiro são partes
fundamentais de nossa essência. E cabe ao homem, por meio de sua
consciência, criar condições para a coexistência dessas duas esferas de
si.

É como aquela história popular, de um homem que tem um lobo,
uma cabra e uma couve, e precisa transportar os três de uma margem
para outra do rio. Acontece que ele só pode levar uma carga por vez no
barco, e, se ficar vigilante, corre o risco de o lobo comer a cabra e de a
cabra comer a couve. A solução da história não só exige que o
barqueiro use de toda sua engenhosidade, mas também que ele não seja
preguiçoso, pois, para atingir seu objetivo, terá de cruzar o rio várias
vezes. Ou seja, só merecerá o nome de homem aquele que, com
consciência, zelar por todos os aspectos de sua essência, todas as
formas de seu ser.

Agora, no caminho até esse homem ideal, muitas vezes a maior
dificuldade está justamente em dar o primeiro passo. Como o próprio
Gurdjieff disse: “O trabalho sobre si mesmo não é tão difícil quanto
desejar se trabalhar, e tomar essa decisão”.
Exatamente. Não há nada mais difícil do que dar o primeiro passo,
sair da inércia. Essa tomada de decisão é essencial. É como no caso de um
carro, que precisa do start do motor para entrar em movimento. Depois que
começa a andar, tudo fica mais fácil, ele se torna até um objeto mais leve.
Por exemplo, se você colocar o pé debaixo do pneu de um carro parado, vai
sentir um peso enorme, de centenas de quilos. Agora, se o carro passar a 60
km/h sobre seu pé, talvez você nem sinta nada. Ou seja, a questão é dar
esse start, é sair desse estado de preguiça mental, física, emocional, desse
embotamento em que muitas vezes nos encontramos. E isso vale para
qualquer coisa na vida. Seja para fazer um regime, praticar uma atividade
física, meditar, realizar um trabalho de autoconhecimento. Não há passo
mais importante do que o primeiro passo.

Mas talvez o maior empecilho para dar esse primeiro passo seja a
nossa mania de deixar tudo para amanhã. Como diz a frase que
Gurdjieff escreveu no toldo de seu centro de estudos na França:
Aquele que tiver se libertado da ‘doença do amanhã’ terá uma chance
de obter o que veio procurar aqui”.

Sem dúvida, essa “doença do amanhã” é o que nos mantém passivos.
Passamos a vida adiando aquilo que sabemos que deve ser feito, deixando
tudo para o outro dia. É uma espécie de entendimento deturpado da teoria
das encarnações, achando que está tudo bem se eu não fizer as coisas agora,
pois terei infinitas vidas para resolver isso. Pura ilusão. Uma vida é
perfeitamente suficiente para a pessoa resolver todas as suas questões, mas,
para isso, tem que se trabalhar. Não dá para deixar tudo para amanhã.
Afinal, ninguém sabe o que vai acontecer daqui a um minuto, muito menos
daqui a 24 horas. Por exemplo, será que vou estar vivo amanhã?
Este é um ponto essencial: nos lembrarmos de que a morte pode
ocorrer a qualquer momento. Gurdjieff criou até um exercício para isso:
várias vezes ao dia, a pessoa deve parar, por 1 ou 2 minutos, e rever o que
fez na última hora que passou, como se fosse sua última hora de vida. E,
daí, deve se perguntar: “Se eu morresse agora, estaria feliz com o que fiz
nessa última hora? Será que, de fato, fiz o meu melhor, fui mais aberto às
pessoas, mais compassivo, mais atento a mim mesmo?”. Essa consciência
da morte muda nossa relação com a própria vida. Em vez de ser algo que
nos dá pânico, a morte se torna uma aliada, que nos mantém mais
conscientes do que devemos fazer. Aí, então, já não existe mais essa
“doença do amanhã”, essa preguiça existencial – a vida é hoje.” (Trechos da entrevista de Artur Andrés com Lauro Henriques Jr, publicada no livro “Palavras de Poder”, vol 1, Editora Alaúde)

*  Artur Andrés Ribeiro é doutor em música pela UFMG, onde leciona. É um dos fundadores do grupo Uakti e já trabalhou com Milton Nascimento, Paul Simon e Philip Glass. É um dos coordenadores do Instituto Gurdjieff de Belo Horizonte.

*Fotos da internet

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