Sobre a experiência artística, temos uma página admirável do
grande poeta que foi Rainer Maria Rilke: "Versos não são, como tanta gente
imagina, simplesmente sentimentos - são experiências: é preciso ver muitas
cidades, homens e coisas, conhecer o voo dos pássaros e o gesto das flores,
quando se abrem pela manhã; voltar em pensamento aos caminhos das regiões
desconhecidas, aos encontros inesperados, às separações já de longe previstas,
às doenças da infância carregadas de profundas e graves transformações, aos
dias fechados ou de sol, às manhãs de vento ao mar, às noites de travessia e de
fuga. E tudo isto não basta. É preciso, também, as memórias das vivências
passadas e mesmo estas não bastam. Pois é preciso também saber esquecê-las,
quando são muitas, e ter-se a imensa paciência de esperar que voltem novamente.
E, quando então tudo tiver retornado dentro de nós, como o sangue, a brilhar e
a gesticular sem se distinguir de nós mesmos, só então pode acontecer que, na
hora rara, a primeira palavra de um poema se levante no meio daquelas
experiências e delas prossiga."
A descrição do processo poético, de Rilke, pode aplicar-se a
qualquer outra arte.
Consideremos o artista plástico diante de sua tela ou da
folha de papel em branco.
Ao escolher uma cor ou preferir uma linha, o artista revela
ao mundo parte de sua vida. Alguma coisa que lhe pertencia, exclusivamente, se
faz partilhar naquela forma nova, criada por ele.
São suas paixões, seus dramas. São suas primeiras impressões
de infância, o despertar para o mundo, as inquietações da adolescência, os
sonhos e arrebatamentos da mocidade, a plenitude da idade madura. É a alegria
do primeiro filho que nasce, as noites de vigília à beira do berço, a
capacidade humana e natural de poder dar-se a alguém.
A arte não é incompatível com as coisas simples da vida. E,
para ser artista, não é preciso viver de um modo extravagante e original. Não é
preciso vestir-se excentricamente e andar pelas ruas de madrugada em rodas
boêmias, embora a arte não exclua qualquer experiência.
A vivência artística é a realidade de uma vida interior
intensamente vivida, onde os acontecimentos grandes e pequenos, originais ou
rotineiros, tem um valor eterno.
É indispensável que este mundo interior exista, para que
haja criação autêntica. É indispensável que exista esta integração perfeita das
experiências com a vida do artista. Que elas façam parte do seu sangue, como
diz Rilke, para que mais tarde frutifiquem como obra de arte. A mão que traça
uma linha e mistura uma cor não estará praticando um gesto vazio de sentido,
mas realizando o que sua experiência exigiu de um modo particular e sincero.
A escolha das cores e formas é espontânea e identifica cada
artista, traduzindo sua personalidade.
É inútil tentar forçar determinado artista a abandonar os
seus meios honestos, sinceros, de expressão, por outros mais avançados, mas não
correspondentes, exatamente, ao seu temperamento e às suas exigências. Uma
forma nasce da contemplação de outra forma, da identificação de sensibilidades
e esta identificação tanto pode ter raízes populares quanto intelectuais.
(Trecho do meu livro “Vivência e Arte”, Editora Agir, 1966, já esgotado)
*Fotos da internet
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