"Em 1977 fiz um estudo comparativo entre o Brasil e a
Índia, sobre Habitat e transferência de tecnologia, como
pesquisador visitante no Instituto Indiano de Administração em Bangalore com uma
bolsa do CNPq.
Estudei Kenchankuppe, uma aldeia no caminho entre
Bangalore e Mysore. Ela é uma das 660 mil aldeias indianas onde hoje vivem
cerca de 900 milhões de pessoas. Ela é semi-autosuficiente em energia e
materiais de construção, alimentos e água, o que lhe deu sustentabilidade
durante milhares de anos ( a energia elétrica somente existe há 150 anos, ou
seja 3% do tempo de vida dessa
civilização).
Ali as casas são desenhadas de modo a abrigar vacas e búfalos, que são alimentados à tardinha, passam a noite em pátios e produzem o valioso esterco que pela manhã é levado como adubo para os campos.
Há muitas atividades ao ar livre, inclusive aulas para as crianças nas estações secas e quentes.
As aldeias hoje se conectam com o mundo por meio das telecomunicações e da
internet, o que revitaliza essas
pequenas comunidades.
Anda-se a pé, de bicicleta ou, atualmente, em motos.
Riquixás são usados, como nas cidades: são veículos arejados, econômicos, que
ocupam pouco espaço, adequados para um ou dois passageiros.
O hábito de comer com a mão direita e fazer a
higiene com a mão esquerda é um modo de codificar o uso do corpo e substitui
equipamentos e objetos. Sentar-se no chão em postura corporal própria é o
padrão.
Ao invés de
dar as mãos, como se praticava no ocidente, o tradicional cumprimento indiano do
Namasté colabora para a higiene pessoal e o isolamento físico. Tem, ainda, um
significado espiritual em uma cosmovisão que acredita existir uma centelha
divina dentro de cada um e que Deus não está lá longe e no alto, mas dentro de
cada pessoa.” O Deus que habita em mim saúda o Deus que habita em ti.”
Há muitos deuses animais, tais como a vaca, o
macaco, a cobra, o elefante etc. Animais são deuses nessa tradição politeísta,
e não apenas objetos ou pessoas não humanas.
O hábito alimentar vegetariano e o baixo consumo de carne contribuem para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e para tornar mais leve ou reduzir a pegada ecológica per capita. A pegada ecológica indica a área necessária para sustentar uma pessoa e qual o peso que o estilo de vida de uma pessoa exerce sobre a terra. Ela é calculada considerando hábitos de vida, alimentares, meio de transporte, energia usada, resíduos produzidos. A Índia tem uma das mais leves pegadas ecológicas per capita do mundo e parte disso se deve à frugalidade de seu modo de vida.
A organização da população em aldeias
descentralizadas, o uso do corpo economizando objetos e os hábitos alimentares
vegetarianos ajudam a explicar a leve
pegada ecológica per capita indiana.
Em 2003, 26 anos depois da pesquisa, publiquei o livro Tesouros da Índia para a civilização sustentável. Condensei o que estudara até então, escrevi sobre a formação histórica da Índia, os impactos da colonização, as questões de ciência e tecnologia, de cultura e meio ambiente, da espiritualidade e do dharma e por que a Índia se sustentou por milhares de anos com baixo impacto ambiental.
Escrevi também sobre a não violência e por que a Índia
tem níveis de violência – assassinatos, estupros e vários outros tipos de
crimes – muito menores do que os do Brasil.
Em 2008
publiquei o livro Meio ambiente e evolução humana com ênfase na ecologia
interior, do ser. Focalizei o interesse
na ecologia pessoal, na noosfera e nas paisagens interiores. Busquei inspirações
em fontes indianas: nos Brahma Kumaris que praticam a raja yoga e com os quais
meditei as 4 horas da manhã em Mount Abu, Rajastão. Dos Brahma Kumaris aprendi
a importância da arte de sair de cena, uma alegoria da própria vida. Inspirei-me
nos conhecimentos sobre a psicologia yogue, a subjetividade, as cosmovisões
indianas que aprendi na Sociedade Teosófica em Adyar; no ashram de Ramana Mararishi em Tiruvanamalai. Os ashrams,
comunidades lideradas geralmente por um mestre ou guru, são altamente
funcionais e obtém bons resultados e qualidade de vida com pouco uso dos
recursos, com suas cozinhas coletivas e áreas
de serviços comuns. Têm um design ecológico inteligente.
A consciência do corpo, a respiração como um ato cultural, o Yoga são parte de um soft power indiano poderoso que aos poucos influencia os demais países e sociedades. A Índia tem uma rica inteligência civilizacional que inclui a hospitalidade para abrigar ampla diversidade de povos, a paciência e resiliência.
2013 –
Em minha mais recente viagem à Índia prestei atenção à água. Vi como sua escassez inviabilizou o uso de uma
cidade, Fatehpur Sikri, construída para ser a capital do império Mogol, mas que
foi abandonada devido a uma mini crise climática. Visitei centros de educação
para a água onde crianças aprendem sobre a importância dessa substancia e sobem
em balança hídrica onde veem a quantidade de água que existe em seus próprios
corpos.
Em 2018 focalizei a atenção em Sri Aurobindo, um farol que
nos ajuda a compreender a grande transição atual e a mudança de eras em que nos
encontramos. Estudei as ideias mundialistas de Gandhi, Nehru, Tagore e o
pensamento político e social de Sri Aurobindo. Já havia traduzido uma Constituição
para a Federação do Planeta Terra, publicada pela imprensa de Auroville, cidade
internacional inspirada em Sri Aurobindo.
Em 2020 estudei a dinâmica e os resultados parciais
da pandemia no Brasil e na Índia. Durante todo o tempo os números de mortes por
milhão são 10 vezes menores na Índia do
que no Brasil. Os números oficiais são
pouco confiáveis devido a subnotificação no Brasil (30%) e na India ( de 2 a 5
vezes - Univ. Michigan) Mesmo no pior cenário para a Índia, o número de mortes
proporcionalmente à população é muito menor do que o do Brasil. Por quê isso?
Levanto várias hipóteses: deficiências de governos; imunidade natural,
genética, variantes menos virulentas, população jovem; distribuição em aldeias;
hábitos culturais e alimentares, hábitos corporais e físicos, civismo etc
Ainda há um enigma e um mistério relacionado com
tais números. Somente haverá uma resposta definitiva
quando a pandemia arrefecer e tivermos o distanciamento histórico para
compreender o que se passou." ( Maurício Andrés Ribeiro)
*FOTOS DE MAURÍCIO ANDRÉS RIBEIRO
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