Sobre a minha trajetória na arte, separei alguns depoimentos
para este blog, dentre eles a crítica abaixo, de Agnaldo Farias:
“No Brasil a entrada em cena da abstração, coincidentemente ocorrida
durante os anos cinqüenta, quando o país trocava sua vocação agrária em favor
de um perfil urbano/industrial, é um capítulo de matizes variados e que, a
julgar pela ênfase na vertente geométrica sediada em São Paulo e Rio de Janeiro,
dada pela historiografia das últimas décadas, resta muita coisa ainda a ser
analisada e avaliada em termos mais condizentes.
Se os cinqüenta foram férteis para a arte brasileira em geral, anos que
hoje figuram dentro da história da nossa arte, até ali não muito exuberante,
como a década da nossa emancipação intelectual, em que o melhor da nossa
produção passou a não depender mais de forças epifenomênicas como Segall,
Guignard e Goeldi, foram igualmente decisivos na trajetória da nossa artista.
Expondo na Ia. Bienal Internacional de São Paulo, em 1951, suas pinturas
e aquarelas calcadas no registro atento e delicado de cenas do cotidiano das
Minas Gerais onde vivia, foi ali que Maria Helena Andrés presenciou o impacto
da abstração geométrica, assistiu a premiação da obra vigorosa daquele que na
altura era o seu maior representante, o suíço Max Bill, autor de “Unidade
Tripartida”, peça que hoje integra o acervo do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo, e voltou sintonizada com o debate que a faria mudar
o vetor de sua pesquisa. Paulatinamente ela foi se afastando, ainda que quase
nunca por completo, de um contato mais direto com o mundo, da pele e das formas
das coisas que ela, sempre com grande qualidade já vinha transformando num jogo
de modulações cromáticas sobreposta a um processo gradativo de simplificação
formal. Data dessa fase as cenas domésticas e rurais, o interior das casas, os
bichos domésticos e pássaros, todos eles reduzidos a elementos geométricos, no
mais das vezes puxados de uma só linha, como um impulso que se desata pela
superfície de papel, ávido no fabrico de um mundo só dele.
Aliás, essa desenvoltura do gesto de Maria Helena Andrés, que se
afirmaria ao longo dos anos, e que inclusive se ampliaria por superfícies cada
vez maiores, é uma qualidade que ela lapidou já no interior do Curso Livre do
Instituto de Belas Artes de Belo Horizonte, onde, sob o comando de mestre
Alberto da Veiga Guignard, tendo ao lado os talentos de Edith Behring e Franz
Weissmann, ela estudou de 1944 até 1947.
A justificada admiração pelas obras de Weissmann e de Amílcar de Castro,
este último colega da nossa artista, obras de caráter mais do que exato,
extraídas do metal ou do correspondente projeto traçado em linhas duras e
despojadas, acostumou-nos, ou ao menos para aqueles não tão bem informados e
que a bem dizer formam a imensa maioria, a pensar Guignard como um professor
que a considerar a diafaneidade e leveza das atmosferas que ele próprio
pintava, pregava justamente o oposto do que fazia: o peso e a incisividade da
certeza. Também nesse sentido, acompanhar a preciosa coleção de desenhos e
croquis que a artista ciosamente conservou consigo, significará perceber um
pouco mais sobre as possibilidades abertas pela lendária lição de Guignard
obrigando seus alunos a desenhar com lápis de grafite duro, lápis que abre um
sulco na fibra do papel, que deixa sobre ele uma marca indelével para além da
trilha escura que ele vai depositando na razão da força empregada pela mão.
Sob títulos prosaicos como “Mudança a cavalo”, “Figuras na rua”, “Boiadeiro”,
“Interior de fazenda”, “Cena da via sacra”, assiste-se ao desenrolar contínuo,
sem rupturas, de uma linha tão seca quanto suave, uma linha de nanquim magra
como o gume de uma faca e que como tal separa os contornos de tudo o que
encontra pela frente – casa, chão, cadeira, cruz; cavalo, cavaleiro, cabresto,
arreio; boi, boiadeiro, vara, berrante-como se fosse possível fender a
paisagem, retirar sua matéria mais estrita, mais rente, seu nervo ou seu osso.
Se a linha é esquálida, o mesmo não se pode dizer da precisão de quem a leva na
qualidade de um corte ininterrupto, que parece respirar apenas quando sua faina
cessa. Mas o que antes nos fascina, o que enleva nossos olhos fazendo-os
flutuar na cadência dada pelas linhas, é a delicadeza com que essa geometria,
ciente das coisas e sobretudo de si própria, abandona-se ao flerte e ao
devaneio da mão, inventando brincadeiras, deslizando para lá e para cá,
deixando-se intrincar ao sabor de curvas íngremes e ângulos abruptos. Tudo
isso, convém frisar, elaborado em papel de pequeno formato, área limitada e que
convida ao olhar mais próximo, colado, um olhar acariciante, coerente com um
traçado minucioso a um só tempo frágil e coeso, como teia de aranha ou arame
dos insetos.
Se a mudança de orientação por parte de Maria Helena Andrés, a opção por
uma poética de extração construtiva não implicou, ao menos na década
contemplada por essa mostra de agora, no abandono da figuração, o fato é que
ela foi levada para mais longe, para uma região em que os motivos representados
tornam-se mais e mais indifusos. Barcos, cidades e construções, em especial
aquelas organizadas através de campos retangulares, eram as vagas referências,
quase que os pretextos para a artista demonstrar a fecundidade da linha,
simplificada em conjuntos justapostos de linhas verticais e horizontais, de que
são exemplares magníficos os estudos para cidade iluminada, realizados a bico
de pena branco sobre papel preto.
A fecundidade do desenho da nossa artista fica ainda mais patente nas
esculturas, versões atualizadas da mesma família de desenhos contínuos
elaborados naqueles anos. Os desenhos fechados, série de quadriláteros
enunciados exclusivamente pelas arestas, linhas que se resolvem em ângulos e
quadriláteros irregulares, sobrepostos entre si, revelam-se enfim formas
retráteis; transpostos para o ferro, as linhas saltam no espaço,
volumetrizam-se, despacham-se no espaço abraçando-se ao ar. Na qualidade de
esculturas perdem a univocidade permitida por sua leitura no plano de papel.
Postas no espaço, passíveis de serem observadas a partir de ângulos variáveis,
cada um único desenho converte-se agora em vários, tanto quanto os pontos de
vistas de alguém que se desloca ao seu redor. Cada escultura é, portanto, um
desenho plural, prova conclusiva do ardil que todo desenho, desde que produzido
por mão sábia, traz dentro de si.” (Agnaldo Farias, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP)
As esculturas recentes,
inspiradas em desenhos construtivistas da década de 50, estarão expostas, de 5
a 8 de setembro na Feira ArtRio através da Galeria Lemos de Sá.
Endereço: Pier Mauá, Av.
Rodrigues Alves, n° 10, Saúde, Rio de Janeiro. Para mais informações entrar no
site www.artrio.art.br.
*Fotos de Maria Helena Andrés e
de arquivo
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“MEMÓRIAS E VIAGENS”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA.
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