Recebi de Regina Helena de Freitas
Campos o texto abaixo, que foi apresentado no dia 15 de maio, em Evento de
Extensão da Escola Guignard
COMENTÁRIO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE
ARTE E EDUCAÇÃO PARA MARIA HELENA ANDRÉS
Escola Guignard, UEMG, Belo
Horizonte, 15/05/2023
Regina
Helena de Freitas Campos
Professora de Psicologia Educacional na
UFMG
Presidente
do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff (CDPHA – www.cdpha.pro.br)
Gostaria em primeiro lugar de ressaltar minha grande
admiração por Maria Helena, como artista, mãe, educadora. A convivência com
ela, desde a juventude, frequentando sua casa como colega e amiga da Ivana (sua
filha), e mais tarde vendo-a a atuar como artista no atelier de litografia de minha
irmã Cacau, junto com Ivana e outras artistas, que funcionava na casa de nossa
mãe, tive oportunidade de observar sua inteligência, sensibilidade e
generosidade, sempre compartilhando seus pensamentos e intuições, estimulando a
ampliação de nossa consciência e criatividade, participando de nossa educação. Para
mim, Maria Helena tem sido uma fonte de inspiração em meus trabalhos em
psicologia e educação, sempre manifestando interesse por minhas experiências e
compartilhando seus ensinamentos e perspectivas.
Nesta oportunidade de falar sobre essas interações com a
grande artista e arte-educadora que conhecemos, farei referência a suas
propostas educacionais expressas no livro Caminhos da arte, de sua autoria,
publicado pela Editora C/Arte em 2000 (Andrés, 2000).
No livro, Maria Helena define a educação como um processo que
visa desenvolver a auto consciência e a consciência ampliada, em articulação com
as relações com o meio em que vivemos e com as pessoas, promovendo a
criatividade. Afirma que, através da arte, o ser humano experimenta o
autoconhecimento, a relação com os outros e com o universo, em formas de
comunicação que superam a verbalização. Na formulação de sua perspectiva sobre
a educação recorre à psicologia de Pavlov, à experiência própria e de outros colegas
como o arte-educador brasileiro Augusto Rodrigues, as educadoras Nathalie de
Salzman (venezuelana) e Lúcia Pimentel (nossa colega na UFMG), os educadores
indianos Krishnamurti e Sri Aurobindo, e companheiros e companheiras, artistas
como ela.
Criatividade é um conceito em psicologia que diz respeito à
capacidade humana de criar coisas novas, sejam objetos, sentimentos, ideias,
reflexões. O que permite a criatividade é, claro, a plasticidade do aparelho
psíquico humano, que promove combinações novas, por ação da mente, da
imaginação, a partir da experiência anterior, seja individual ou social, e dos
conhecimentos já adquiridos através dessas experiências. Todo ato de criação
tem também uma dimensão emocional, são as emoções e a curiosidade sobre o mundo
que desencadeiam em nós a necessidade de inventar coisas novas, visando a
integração com o ambiente e com as pessoas com quem compartilhamos o ser-no-mundo
(Vigotski, 2018).
Como artista, Maria Helena considera a arte como “a grande
auxiliar da educação” (p. 145). Como se daria essa colaboração? A educação visa
transmitir conhecimentos. Contudo, o acúmulo de informações apenas teóricas,
não vivenciadas pelo estudante, não é suficiente para a construção verdadeira
do conhecimento, para a sua internalização subjetiva. Assim, a arte, ao
proporcionar a oportunidade de o estudante vivenciar conceitos abstratos de
forma mais concreta, muitas vezes lúdica, próxima da realidade, é que poderia
contribuir para estabelecer uma articulação mais dinâmica entre o sujeito e o
conhecimento.
No mesmo livro – Os Caminhos da Arte – Maria Helena
observa que o educador deve ser “humilde diante do novo que desperta” (p. 145).
Como o conhecimento transmitido é sempre novo para o aprendiz, é preciso dar a
ele a oportunidade de vivenciar essas novidades a partir de sua própria
subjetividade, conectando-as com experiências anteriores. Assim, o
desenvolvimento da consciência, com o auxílio da arte, “torna-se um processo
natural de crescimento”, sendo o movimento criador um impulso espontâneo do ser
humano, que se realiza através de ações. As pessoas estão sempre interrogando o
mundo que as cerca, investigando como se organiza, descobrindo suas leis, se
conscientizando e, consequentemente, expandindo suas possibilidades de intervir
no ambiente e nas relações com o outro. O aprendiz procura conhecer os objetos e
acontecimentos do mundo físico, do mundo social e do mundo emocional agindo
sobre eles, e percebendo como respondem a seus questionamentos e perguntas.
A ação sobre os objetos tanto físicos quanto sociais ou
emocionais pode sempre ser mediada por atividades artísticas - a dança, as
artes plásticas, a música, o teatro, as artes em geral. Através delas se
instaura a vivência do espaço e das formas (artes plásticas),do movimento (dança),
dos sons, do tempo e do ritmo (música), da sociabilidade e construção da
alteridade (teatro), da linguagem e da função simbólica (literatura), etc.
Piaget, o grande estudioso do desenvolvimento humano,
especialista em interrogar as crianças sobre sua visão de mundo e suas ações, certamente
concordaria com essas afirmações sobre a educação. Para o psicólogo suíço, o
desenvolvimento é um processo de superação do egocentrismo (como auto-referência)
e é essa superação contínua das limitações que nos são impostas por nosso
próprio ponto de vista que permite o acesso ao conhecimento e a conquista da
objetividade (possível) para os seres humanos. Para ele, o progresso do
conhecimento não procede da mera adição de detalhes ou de novos níveis, como se
o conhecimento mais amplo fosse somente um complemento do anterior, mais pobre
ou incompleto. Pelo contrário, os conhecimentos mais complexos exigem uma
reformulação contínua dos pontos de vista prévios, por meio de um processo que
retrocede e avança, corrigindo a cada momento tanto os erros iniciais
sistemáticos como aqueles que surgem no transcorrer do caminho. Piaget cunhou
os conceitos de assimilação (o movimento do sujeito em direção ao mundo que o
cerca, aos objetos, sejam concretos ou abstratos), a acomodação (quando o
quadro de referência anterior do sujeito se transforma para acomodar um novo
conhecimento) e equilibração (quando um equilíbrio – muitas vezes dinâmico, precário
– é atingido, a partir do qual se iniciam novas descobertas).Esse processo dialético,
segundo Piaget, obedece a uma lei de desenvolvimento bem definida, a chamada “lei
da descentração”, como ocorre com a ciência, quando ela passa da perspectiva
geocêntrica para a heliocêntrica, ou como ocorre com a criança pequena, quando um
conceito, por exemplo o de vovô, deixa de se referir apenas à imagem de uma
personagem privilegiada e passa a se referir a todo um conjunto de seres
humanos compreendidos em um sistema de relações de equivalência (Piaget, 1976; Parrat-Dayan,
2007).
Maria Helena considera que as artes promovem a conexão entre
o corpo e a natureza, entre o sujeito e as outras pessoas, que desencadeia o
processo de conhecimento descrito acima a partir dos sentidos. Especialmente
nas artes plásticas, as mãos funcionam como “intermediárias entre a mente, o
físico e as emoções” (p. 147). Segundo ela, na educação pela arte “as mãos
ocupam um lugar de grande importância, pois permitem o extravasamento imediato dos
símbolos do inconsciente, aflorados através de formas, cores e sinais gráficos”
(p. 147). Essa afirmação lembra a psicóloga e educadora russo brasileira Helena
Antipoff, que considerava as mãos como um prolongamento físico da inteligência,
afirmando que o sujeito pensa com as mãos, experimentando, operando... (Antipoff,
1992, p. 125; Almeida, 2017).
Outro momento de expressão de grande impacto no
desenvolvimento é o aprendizado do desenho. Para Maria Helena, os sentimentos e
representações do mundo na criança são revelados nos desenhos, na pintura, na
modelagem. Todas essas atividades não verbais seriam uma expressão direta das
emoções, dos sentimentos e do intelecto, trazendo à tona aquilo que a palavra
não consegue expressar.
Também a poesia, “forma direta e quase musical de expressão
criadora” (p. 147), seria uma via para o desenvolvimento da consciência, na
medida em que expressa uma síntese de várias formas de expressão de uma visão
de mundo permeada pelas emoções.
A propósito dessas funções da arte, Maria Helena lembra os
pensamentos inspiradores de Augusto Rodrigues, que dialogou intensamente com
Helena Antipoff a propósito da arte-educação (Almeida, 2017). Para Rodrigues, a
arte seria um fator relevante no processo de tornar a cultura viva, palpável,
pois que através dela “o homem traz à superfície o que há de mais profundo
dentro dele, descendo a seu âmago” e dele emergindo a partir da subjetividade
mais genuína. Esse movimento proporcionaria ao ser humano a possibilidade de,
conhecendo-se a si mesmo, conhecer o seu semelhante. Nas palavras de Maria
Helena:
O “(...) núcleo interior (do ser
humano) é atingido no momento criador, despertando espontaneamente a
consciência de si mesmo. A arte é o caminho direto para essa redescoberta do eu,
porque o ato criador representa o próprio encontro com a vida” (Andrés, 2000,
p. 148)
Essa
articulação entre o momento de criação e a consciência de si parece ser a
síntese da proposta de arte-educação de Maria Helena. As etapas do
autoconhecimento associado à criação do novo seriam, na sua visão:
1) explorar as potencialidades contidas no próprio corpo, com
seus movimentos e vibrações mais sutis, incluindo, claro, sua relação com a
mente;
2) compreender a grandeza do potencial contido no psiquismo,
visando nossa realização como seres humanos, “vivos e habitantes do planeta”;
3) experimentar o sentimento de paz interior que “brota
espontâneo desse conhecimento de nós mesmos” (Andrés, 2000, p. 149).
Sintetizando
o processo que descreve (e que ela conhece bem, como artista que é), Maria
Helena resume o sentimento de plenitude que dele decorre, usando o famoso dito
do oráculo de Delfos: “Conhece-te e sê livre” (p. 149).
A propósito
dessa experiência de autoconhecimento e libertação proporcionada pelo fazer
artístico na educação, a autora cita sua larga vivência com experimentos
educacionais de autores como Nathalie Salzman (a educação para o despertar da
consciência e o desenvolvimento do sentimento), Lúcia Pimentel (uso de novas
tecnologias para ampliar o alcance da experiência educativa). Inspira-se também
nas propostas educacionais dos indianos Krishnamurti e Sri Aurobindo, que
propõem o desenvolvimento do aprendiz de forma integral (corpo, emoções e
mente), articulando a atividade espontânea ,o respeito a todas as formas de
vida, a liberdade de pensamento, o prazer de aprender sem depender de
recompensas ou punições, despertando o interesse por tudo o que se passa ao
redor dele, proposta sintetizada na afirmação de que “é de dentro de si mesma
que a criança (=o aprendiz) vai buscar o seu caminho para atuar no mundo com
plena consciência” (Andrés, 2000, p. 151). Através de atividades artísticas e
esportivas e das práticas da ioga e da meditação seria possível conseguir esse foco no autoconhecimento e no desenvolvimento
integral das potencialidades humanas, associando as culturas ocidental e
oriental, razão e intuição.
Experiências
práticas de arte educação conectadas a essas reflexões são citadas na Índia,
onde a autora teve oportunidade de observar educadores e filósofos colocando em
ação suas ideias, e no Brasil, no trabalho de artistas populares do Vale do
Jequitinhonha, de educadores inovadores da Escola Guignard (como Sara Ávila) ou
em outros lugares.
O objetivo
seria sempre estimular a melhor conexão com o mundo, através de uma
“consciência cósmica”, na qual, “quando temos a mente vazia de conceitos e
teorias, podemos perceber a eternidade de cada instante, sentindo a vida como o
próprio movimento criador se manifestando” (Andrés, 2000, p. 185).
Em
conclusão, recomendo fortemente a referência ao livro Caminhos da arte
como inspiração para os educadores na atualidade, por sua relevância para
nossas preocupações contemporâneas – a autocentração, a paz interior e
exterior, o cuidado com as outras pessoas e com o meio ambiente – e por sua
extrema sensibilidade! (Depoimento de Regina Helena Campos)
Referências:
Almeida, Marilene Oliveira (2017) As vozes de Helena Antipoff e Augusto Rodrigues no ensino de arte em Minas Gerais (1940-1960): diálogos e
colaborações entre a arte e a educação nova. Belo Horizonte: SC Literato.
Andrés, Maria Helena (2000) Caminhos da arte. Belo
Horizonte: C/Arte.
Antipoff, Helena (1992) Coletânea das obras escritas de
Helena Antipoff (Vol. IV – Educação Rural). Belo Horizonte: Imprensa
Oficial.
Parrat-Dayan, Sílvia. Piaget e a pedagogia. In: Assis, R.M.;
Lourenço, E. & Borges, A.A.P. (Orgs.) Cultura, direitos humanos e
práticas inclusivas em psicologia e educação. Belo Horizonte: CDPHA e
Editora PucMinas, 2015, p. 51-64.
Piaget, Jean (1990) Epistemologia genética. São Paulo:
Martins Fontes.
Vigotski, L.S. (2018) Imaginação e criação na infância
(Trad. Zoia Prestes e Elizabeth Tunes). São Paulo: Expressão Popular.
*FOTOS DE MARILENE ALMEIDA
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